Terra fecunda


Publicado em
Texto por
Severo Garcia
Imagem por
Denise Nova Cruz

No dia em que ela nasceu, o sangue veio lavando o chão. Não consigo esquecer essa imagem. Recordando, parece que aquela não é quem eu sou. Mas sei que sou ela também, por mais que estranhe pensar nisso. Talvez tenha sido neste dia que as coisas começaram a mudar em mim. Dia 13 de maio de 1987. Eu tinha 20 anos. Não fazia ideia de como seguir a vida. Tudo ficou congelado naquela época. Ainda por cima, a minha bebê passou muito tempo sozinha na incubadora. Às vezes, penso que nós duas estávamos naquela incubadora. Tempo demais para sofrer com o medo de que minha filha morresse ali. Distante de mim. Eu não queria dormir. Ficava acordada o máximo de tempo possível. Até meu corpo não aguentar. Não recordo muito bem do que estava acontecendo com o mundo, com o Brasil. Tenho a impressão que não vivi o que acontecia ao redor. É estranho contar tudo isso para você. Você nem perguntou nada sobre isso. Eu simplesmente comecei a contar algo íntimo sem você indagar nada. Provavelmente nunca me senti tão à vontade para conversar com alguém como você. É como se você me escutasse só acompanhando o que falo. É fluido. Falo e você escuta, realmente interessada em saber o que estou contando. Sei que pode parecer exagero, mas é assim que me sinto: leve. Leve em saber que tem alguém interessada no que me aconteceu. Você quer saber mais? Se sim, posso contar outras coisas que aconteceram comigo.

(…)

Um sofro de vida sem fazer eco. Tudo intenso, sensível e cintilante. Não sei ao certo se você lembra daquelas pessoas e daquilo que nós vivíamos juntas depois que a minha filha morreu. Você lembra? Eu enterrei o meu coração na curva de um rio. Não queria falar sobre aquilo que sentia. Falar da minha filha era assunto inominável. Até hoje falo pouquíssimas vezes o nome dela: Júlia. Algo me bloqueou e sei que pode parecer uma coisa boba de se dizer, mas tenho medo de falar o nome dela e abrir alguma porta que guardou muita dor e sofrimento. Essas coisas podem me soterrar de desilusão. É engraçado, tenho medo do que posso dizer e meus ouvidos não estarem habituados a escutar aquilo que só o coração sente. Se o coração tivesse boca talvez haveria muito amor pelo mundo. Não sei dizer. Pode ser uma viagem isso que estou dizendo. E mesmo eu dizendo essas coisas malucas que me passam pela cabeça e sei que você me escuta com atenção. Não ridiculariza e nem subestima o que falo. É como se você talvez também tivesse as pequenas loucuras que estou dizendo agora. Quem não guarda suas pequenas loucuras longe dos seus objetivos? Sim, eu tenho medo e, ao mesmo tempo, vontade de perder o foco, desviar de objetivos e obediências e só viver uma liberdade nua. Sei que é difícil de levar a sério o que digo. Pareço uma velha idealista. Eu sei. Tô com quase 60 anos. Posso parecer o que quiser ser, não é? Você não vai dizer: “Laura, você continua sendo uma pessoa enrolada”. Eu sei que não sou sensata. Mas presta atenção: perdi minha filha com 20 anos. Fiquei casada por muitos anos e demorei para conseguir sair atrás de um amor para me sentir viva. Acho que foi a Piedade que abriu as minhas portas da percepção. Ela era inteligente, corajosa e precisa. Você sabe que fico molhada com gente inteligente. Então pensa, aquela linda e inteligente professora na minha frente. Bom, só me dei conta que tava gamada nela quando fui de carro para São Paulo visitar ela nas férias. Sai sem avisar. O Paulo até hoje não deve ter entendido o que acontecia. Nem eu sabia. Foi quando cheguei na casa dela em São Paulo foi que me caiu a ficha que gostava de outra mulher. E depois de sofrer como uma cadela eu ainda tive um câncer. Então que me dou o direito de não ser sensata. Às vezes, passo um tempo imaginando o que a Júlia estaria fazendo hoje. Será que teria feito medicina como eu? Ou teria se graduado em letras? Ou sei lá, não estivesse nem aí para estudar e preferisse fazer qualquer coisa para não se preocupar com nada? As vezes, é tanta pergunta que passa pela minha cabeça que eu não consigo parar de pensar. Ainda bem que tudo tem um fim e assim consigo voltar para pequenas partes do que ainda tenho que viver. Um amor que não viu o tempo crescer. Não sei que tamanho teria. Nem que número de sapato calçaria. Que músicas seriam suas preferidas. Se iríamos rir de alguma piada besta. Aquelas risadas íntimas entre as pessoas que se amam. Não sei como a Júlia seria. Por isso sinto essa necessidade de imaginar ela com 25 anos hoje. Mas é tão difícil juntar aquele pequeno rosto que guardo na memória daquele tempo no hospital com um rosto que sempre foi recém nascido. A minha filha morreu, mas ainda segue presa na minha cabeça. Segue na minha incubadora, talvez por isso que eu também me sinta sozinha nesta mesma incubadora. É como uma gaiola invisível.

(…)

Fecundar a terra é uma arte. Parece simples, mas não é. Ser alguém alegre, potente e feliz é uma prática cotidiana. Seria mais fácil eu falar do vazio, da falta, daquilo que não se preencheu. E depois de um tempo vivendo como uma pessoa com dor e a marca de uma cicatriz que não mostrava para ninguém, busquei enterrar em mim as minhas feridas e seguir. Com insistência e relutância, resolvi colocar o cabelo na bananeira. Uma velha simpatia que minha avó e mãe sempre comentavam. Se a bananeira cresce, o cabelo também irá crescer. Quem sabe eu também mude. Mas não é só jogar o cabelo na bananeira. Há um preparo: cortar alguns fios de cabelo e enrola-los num papel. Escrever o nome num papel com lápis em uma noite de lua crescente. É preciso internar na raiz de uma bananeira (há quem diga que precisa conversar com a lua – com a bananeira? – e fazer um pedido em voz alta). Não conte a ninguém até o pedido se realizar e agradeça à bananeira. Até hoje sou devota da bananeira.

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