Por um Triz


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Texto por
Severo Garcia
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Severo Garcia

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Grande parte do que sou é tresloucada de final feliz. Por isso, encaro a vida como um zumbido sem melodramas. Às vezes, aprecio a autoficção – embora fosse mais justo dizer que tenho memórias inventadas de autoficção. Houve tempo em que eu não tinha nada de original a dizer ou a fazer. Ainda assim, insisti em autoficcionar a minha própria divina comédia.

 

E quanta coisa se perde, mas não se esquece? Quem eu era parece distante de quem eu sou. Talvez por isso ue invente, preencha as lacunas do que não vivi. Passei por momentos em que o desejo estava fora do meu alcance. Hoje posso contar o que me aconteceu, ainda que nem tudo seja verdade.

 

Gosto de espalhar mentiras de que já fui grã-fina, de que vivi como uma madame. É claro que é mentira. Quem nasce pobre não morre rico. Não carrego falsas esperanças. Mas admito que, por um certo tempo, vivi em uma certa zona de conforto improvável. Para quem nasceu no interior, dessas cidades minúsculas do país, repetir a história da própria família é quase tão inevitável quanto “subir pra cima”. Adoro esse pleonasmo – o melhor que existe. E quem se importa com pleonasmos, afinal?

 

Se um dia estudássemos (coitados dos professores de português, eles vão querer a minha cabeça) a forma como o povo brasileiro fala e escreve, talvez encontrássemos a verdadeira cara do país.

 

A realidade é pobre – e é por isso que o pobre imagina. Gosta de se iludir com histórias que não são suas, embora muitos contem as histórias alheias como se fossem próprias. É assim que se mantém o povo no lugar: dizendo que pode sonhar, desde que o sonho fique sempre adiado, guardado para “um dia”. Mas quem se importa com os sonhos dos anônimas? Gente que nunca vimos, nem vamos ver.

 

Sou uma das poucas que podem afirmar que arrancaram uma sombra de si. Eu vivia abafada. Não foi o HIV nem o medo da morte – foi a morte do Paulo que virou uma chave dentro de mim.

 

Ele alimentava minha vaidosa e despertava a mulher luxuriosa que fui enquanto ele existiu. Talvez, se ele não tivesse morrido, eu não tivesse aprendido a enfrentar a vida do jeito que enfrentei. Aquela sombra que precisei tirar de mim foi essencial para a sobrevivência.

 

Minha filha estava na adolescência, e eu, cheia de dúvidas. Não tive tempo para pensar demais. Uma força bruta saltou de dentro de mim. Em invés de ficar de luto, a morte dele também me libertou. Ele bebia demais – tanto que, às vezesm os amigos o carregavam do bar até em casa. Foram anos de brigas. E a morte, ao invés de paz, abriu novas batalhas.

 

De repente, eu era a responsável pela casa. Já era adulta, mas não tinha muita escolha. Olhando pra trás, parece que fiz as escolhas certas.

 

Não vivo arrependimentos. Detesto gente que reclama de tudo. É cansativo. Não fiz nada de grande impacto no mundo, não ganhei prêmio algum (risos), mas criei a minha filha, e ela é uma mulher forte. Tão forte que, às vezes, preferimos o silêncio à discussão. Sabemos que é melhor guardar energia para as partes do mundo que realmente precisam de conserto.

 

Quem dorme bem sabendo que o mundo está sempre em guerra? Quantas guerras já vivemos neste planeta? Não há livros de história que não fale delas. As guerras são o alicerce do mundo. E eu sei: pouca gente perde o sono por uma guerra distante, em um país que nem sabe nomear. São pessoas que viram figurantes – esquecidos da narrativa.

 

Anônimos. Eternamente mortos, séculos após séculos, milhões de vidas destruídas pela guerra, pela fome e pelas doenças, às vezes, pelas três ao mesmo tempo.

 

Depois da morte do Paulo, restou apenas a possibilidade de sobreviver. E eu sobrevivi. Como o último de nós. Não sobrou outra escolha senão ser – e continuar sendo – eu mesma.

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