Céu irisado


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Texto por
Severo Garcia
Imagem por
Severo Garcia

[…]

 

Julho de 1990. Estar perto do litoral dá a impressão de que é possível ir além. Romper a linha invisível do horizonte. E o Itanagé? Na Colômbia, perdido ou preso, ninguém sabe ao certo. Estranho pensar que deixamos o contato se perder. Ele era nosso melhor amigo naquela época. Como riamos juntos.

 

Itanagé adorava contar a história do próprio nome. O pai repetira tantas vezes que ele a carregava como quem guarda um talismã. Dizia que, certa vez, seu pai esperava na rodoviária quando encontrou um velho indígena. Não lembro por que razão conversaram. É gozado como esquecemos alguns detalhes das histórias que nos contam.

 

No meio da prosa, o indígena afirmou que ele teria um filho. O homem riu. Já havia desistido de ser pai; ele e a esposa tinham tentado por anos, sem sucesso. Despediram-se, cada um seguindo seu rumo. Mas, por algum mistério que ninguém sabe decifrar, meses depois nasceu Itanagé, homenagem tardia a um oráculo encontrado ao acaso no banco duro de uma rodoviária.

 

Foi com Itanagé que fiquei chapada pela primeira vez. Não sei ao certo se tinha 17 ou 18 anos, mas já estava na faculdade. Foi ele quem me ensinou a tragar. Os primeiros instantes foram incríveis: nunca tinha sentido meu corpo tão solto e, ao mesmo tempo, tão preso ao chão — uma contradição viva. Lembro que estava afundada numa poltrona de corino vermelho, aquela imitação de couro que era moda na época.

 

Digo “primeiros momentos” porque, no início, minha cabeça fervilhava de ideias que eu achava absolutamente geniais. Pena que não anotei nada. Esse é o drama de muitos maconheiros: teorias brilhantes condenadas ao subsolo da mente. Mas me lembro de um insight que considerei revelador — eu também andava fascinada por Freud — quando percebi que pensava mais em mim do que nos outros. E que, se eu realmente prestasse atenção nos outros, talvez conseguisse finalmente me compreender. Um insight valioso, como se eu tivesse sido despida por mim mesma.

 

Mas logo depois vieram pensamentos indesejados, quase incontroláveis. Minha mãe e meu pai tomaram a minha cabeça e não saíam de lá. Povoaram tudo. Era como se eu estivesse revivendo, em looping, as cenas de casa: brigas, desentendimentos, minha mãe se humilhando, meu pai se impondo como dono de toda razão. Ela parecia incapaz de se mover daquele pesadelo e, por consequência, nós também ficávamos atolados naquela areia movediça. Meu irmão e eu fugíamos como podíamos, mas a implicância do meu pai sempre caía sobre mim.

 

Esses pensamentos me deixaram tão irritada que consegui me levantar da poltrona vermelha para buscar algo de comer. Eu estava com tanta larica que comeria até um leitão pelo pé.

 

Depois daquela vez, Itanagé ainda ficou por perto por um tempo, antes de desaparecer da faculdade. Quando a gente é novato, ensinam de tudo, menos a lidar com um erro. E foi assim que ele se foi.

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