[…]
⁃ Quando você quiser.
⁃ Tem coca cola?
⁃ Não, tem Pepsi.
⁃ Pode ser.
⁃ Qual é o seu texto preferido?
⁃ Meu ou de outras escritoras? (…) Queria ter escrito “perto do coração selvagem”.
⁃ E, seu?
⁃ Não gosto de falar sobre o que não sei (risadas). Não tenho preferência por aquilo que já escrevi. Não releio o que publiquei. Desapego do que não é necessário. Essa é minha liberdade de criar. Se estou sem disposição para escrever algo, não escrevo.
⁃ Como é o seu método para escrever?
⁃ Não tenho. É no caos. As palavras e ideias vêm entrecortadas. Fragmentos e frases que não sei exatamente o que querem dizer no seu começo. Peças soltas. Chego a ficar sem jeito comigo mesma. Tenho náuseas. É um horror.
⁃ Como organiza o seu caos?
⁃ Não organizo. Meu corpo adoece. Vario entre a realidade e o que escrevo. Por isso, luto para terminar meus livros.
⁃ Então, por que você escreve?
⁃ É uma necessidade.
⁃ Mesmo que isso lhe adoeça?
⁃ Sim. É uma luta de dentro para fora.
⁃ Você citou o livro da Clarice Lispector como um livro exemplar que gostaria de ter escrito. Você se vê como ela?
⁃ (risadas). Não, jamais. Eu admiro profundamente a obra dela, mas somos diferentes na justa medida.
⁃ (provocante) Vocês têm similaridades. Inclusive a língua presa. Desculpe se estou sendo inconveniente.
⁃ De fato. A língua presa é uma preza fácil para piadas bobas. Os erres ficam presos no buraco da boca, mas há tantos sons soltos no manancial da língua. Há um sotaque melódico, contido e cântico. É só prestar atenção.
⁃ Você escreve desde quando?
⁃ (como que fazendo um esforço de memória) Na infância, a distância e o espaço são diferentes. Cada uma tem sua velocidade. Meus pais tinham livros espalhados pelos cantos. Os livros eram nosso lar. Nós mudamos muito. E eles sempre nos acompanhavam. Tenho lembranças vivas de uma época alegre. Quando tinha uns cinco ou seis anos, meu avô comprou uma caçamba de terra e aquele amontoado ficou na frente de sua casa durante um tempo. Minha maior alegria era subir naquela montanha de terra e descer rolando. Era mágico. Lembro de minha mãe me erguendo pelos braços e sem deixar entrar em casa andando. Ia até o banheiro suspensa nos braços dela. Era bom. Não me sentia suja. Repeti isso muitas vezes. Ainda bem que minha mãe dava liberdades. Acho que escrevo desde pequena.
⁃ Onde era isso?
⁃ Não recordo.
⁃ Em seus livros sempre há escritores. Qual a razão?
⁃ É fascinante, para mim, o universo solitário que envolve escritores. Ao mesmo tempo é uma forma de ficcionar memórias. Amo autoficção.
⁃ Você escreve sobre si?
⁃ Quem consegue escapar da palavra que fala? (risadas)
⁃ A senhora é reconhecida por ter vivido um tumultuado casamento. Raramente fala sobre esse assunto. Por que?
⁃ Ora, não gosto de falar sobre os mortos. E digo mais, não há um dia em que não pense nele.
⁃ Como ele era?
⁃ Prefiro falar sobre meu novo trabalho.
⁃ Certo! Porque a escolha do título “Sonhos do céu”?
⁃ Gosto da sonoridade. É a história de uma idosa chamada Susan, internada em uma clínica geriátrica, que durante as madrugadas insones escreve suas memórias e sonhos ininterruptos até sua morte. Achei tocante imaginar os sonhos que “perambulam” pelo céu.
⁃ É difícil compreender o que é esse livro. É tão autobiográfico em que há momentos que parece impossível não considerar que o que a senhora escreve, além de muito fluido, descritivo e bem escrito, sobre a sua própria história. É isso mesmo?
⁃ Depois que termino um livro me torno uma leitora de uma obra desconhecida. Sou uma ladra de histórias, uma parasita das entrelinhas. A vida tem suas coincidências. Viver numa clínica geriátrica não é uma experiência de poucas pessoas. Sou feliz onde moro. E detesto lavar louça. (risadas).
⁃ Suas histórias envolvem violências. Às vezes, a senhora descreve detalhes como se estivesse oferecendo uma imagem minuciosa. Por que aborda tanto a violência?
⁃ Em meus primeiros livros não tinha a compreensão de que a violência estava tão presente no dia a dia. É curioso como escondemos coisas de nós mesmos. Só vim a perceber a presença da violência depois que vivi uma experiência traumática. Mas não quero falar sobre isso.
⁃ Neste último livro a senhora conta uma história que surpreende pelo desfecho. Como chegou a ideia?
⁃ Vou revelar um segredo. Eu transformo o mundo à minha maneira. No “Sonhos do céu” conversei com muitas mulheres. Eu fui muitas vezes até uma delegacia da mulher. Foi lá que escutei muitas histórias. Mulheres fortes. Contextos desfavoráveis. Crianças assustadas. Aprendi e sufoquei o peito com tantas desgraças. Voltava para casa exausta e querendo matar qualquer homem que cruzasse o meu caminho. E, cada vez que eu voltava, ficava ainda mais revoltada com que escutava. Cada história inflamava o meu ódio pelo mundo. Descobri informações surpreendentes. Você sabia que as mulheres que morrem não chegam à delegacia? Depois de tudo isso, só consigo afirmar que a gente nunca sabe porque uma mulher continua um relacionamento mesmo sendo violentada. Quando encerrei o meu campo de pesquisa – devo ter entrevistado perto de 100 mulheres violentadas – sai com uma pergunta na cabeça: como enfrentar as injúrias do mundo? Ainda não sei a resposta.
⁃ No começo do livro a senhora afirma que as histórias são cedidas e que são pedaços e peças de arte inspiradas na vida real. A inspiração, portanto, parece vir da observação do mundo, da vida que está acontecendo. Por outro lado, o que sufoca a sua imaginação?
⁃ Não tinha parado para pensar nesta pergunta antes de você perguntar. Sem refletir profundamente, o que vem na cabeça é tentar imaginar o que os outros vão imaginar ao lerem algo que escrevi, quando sei que algo falta e a minha escrita não está suficientemente boa. É ridículo dizer isso, mas é a verdade. Mesmo depois de tantos anos de experiência como escritora, ainda carrego uma fantasia infantil de que algo ou alguém poderá ainda me desmascarar. (risadas). Não ria assim a tanto tempo. Não sabia que ainda conseguia inventar algo tão espontâneo e, mesmo achando ridículo e bizarro, ser capaz de dizer. Estou impossível hoje. (risadas). É muito bom quando a imaginação é livre.
⁃ A senhora me deixou um pouco desconcertada. Não sei o que dizer.
⁃ Fique tranquila. Estamos conversando e isso, por si só, já é suficiente para nós duas continuarmos essa conversa. Estou gostando de contar um pouco quem sou. Ainda que continue atrás de mim para saber quem sou. E, certamente, uma das perguntas que me inquieta é: quem escreve e porque? Talvez ainda não estivesse atrás da resposta dessa indagação, não teria escrito nenhum livro. A minha imaginação inventa outras. Invento personagens, diálogos, assuntos que estudo escutando, vendo e lendo o mundo. O mundo que invento é uma realidade ficcional. Histórias que não são minhas, mas se tornam minhas quando as escrevo. Por isso, para mim, um livro é a materialização da minha imaginação. Nele deposito meu tempo, minha energia, minhas emoções. Mas como sou insuficiente. Tenho dentro de mim um buraco que é impossível visualizar o fundo. Sei que manter-me escrevendo é importante. Permite dar um sentido para existir. E cada peça que redijo é como se estivesse em minha cabeça. Por isso, preencho, aos poucos, o sentimento de vazio que me absorve em algumas horas. Às vezes, em situações banais começo a chorar. Noutras circunstâncias fico muda. Não abro muito a boca. E acabo me acostumando com o silêncio do ambiente. Enfim, falei mais do que devia. Acho que é um jeito de pedir desculpas pela minha brincadeira boba com uma pergunta bela e profunda sobre a imaginação. Acho que vou ter que pensar um pouco mais sobre o assunto. Realmente não sei dizer o que sufoca a minha imaginação. Vou pensar.
⁃ Certo! A senhora tem um jeito diferente de responder algumas perguntas. A senhora percebe que não é fácil buscar um diálogo com alguém como a senhora?
⁃ Não compreendi.
⁃ A senhora fala e escreve de um modo enigmático, quase entrelinhas. É como se suas palavras revelassem camadas ocultas, pedindo que fosse desdobradas pouco a apouco. Ao ler seu livro, não não pude evitar a lembrança de um passeio de balão: vejo o guia soltando o gás, sinto o balão subir, depois deixá-lo seguir seu próprio rumo, até que, de repente, voltava a injetar gás para ganhar altura. A leitura provoca algo semelhante. Quando penso que a narrativa vai deslanchar, ela retoma a um vai e vem, entre impulso e pausa. Haveria algum problema em responder outras perguntas?
⁃ De modo algum. O que você quer saber?
⁃ A senhora comentou que passou por uma experiência traumática. O que aconteceu?
⁃ O mundo está dividido. E tudo perece, já reparou? Quer seja num dilúvio ou no terror, não quero deixar registrado um trauma. Uma cicatriz pode ser uma memória dolorida. E, dependendo de uma história, uma cicatriz também pode ter uma memória alegre. Esse registro de uma história alegre me encanta, embora eu tenha uma tendência a abraçar as tragédias, gosto de me envolver com assuntos desconhecidos.
⁃ O que a senhora considera mais importante numa história?
⁃ Os primeiros parágrafos exigem grandes paralelos. Afinal, o que é um livro sem um começo que instigue seguir adiante? Também tenho a mesma preocupação com a última frase. O final é um artefato precioso.
⁃ Como escapar do risco de encerrar um texto com frases pretensiosas ou reflexões audaciosas?
⁃ Dos narcisistas aquilo que o espelho não oferece, os tímidos e inseguros são capazes de entregar. É no medo do abandono, do vazio profundo, do amor que faltou, que entrego toda a minha atenção, a minha vontade narcísica de ser lida e reconhecida. Faço isso para me sentir satisfeita. Por à prova o que escrevo. Gosto de imaginar que um desconhecido se encontra comigo naquilo que imagino. A narcisista e a insegura habitam meu corpo e mente. E um final de história é um desfecho de pequenos momentos. São tantas pistas nos livros e na vida que deixamos de lado muitos dos seus indícios. A vida é abundância de detalhes. Um sucessivo encontro e desencontros entre instantes. E o meu desejo é registrar um instante insignificante.
⁃ Seus textos borram as margens. Como se abrissem várias possibilidades de interpretação. É proposital?
⁃ O acaso da escrita é uma verdadeira mentira. Nada é acaso. E nada na vida está escrito. Veja, estou falando para você o que penso e escrevo, isso não é uma coincidência. Você não acha?
⁃ Sinto como se estivesse caminhando por um labirinto. A senhora e seus livros permitem uma experiência de desorientação. O centro do que escreve é o encontro com a morte?
⁃ Não parto da noção de que os caminhos levam à salvação. Nem mesmo a nossa natureza é pecaminosa. Uma peregrinação não pode ser prescrita. A entrada naquilo que você está chamando de labirinto poderia ser uma viagem de fertilidade. Diria que a vida está ligada à morte, à fecundidade e ao nascimento. Mas meus livros não tem oráculos e adivinhações. Embora adore o tarô.
⁃ Quando foi a decisão de morar numa instituição de longa permanência?
⁃ Esse é um nome interessante. Prefiro chamar de casa. Às vezes, é quase um laboratório. Existem regras, mas não estou presa. Não estou escondida em minhas escolhas.
⁃ De onde vem seu sobrenome?
⁃ É roubado (risadas). Safo é uma inspiração na poetisa grega Safo de Lesbos. Gosto.
⁃ Posso fazer uma última pergunta?
⁃ Essa é sua pergunta?
⁃ Não, não. Meu tempo acabou e eu não cheguei nem na metade. Queria saber como é envelhecer?
⁃ Bem, é no final que você me coloca em xeque. Envelhecer é desigual. Sou do tempo do que está vivo. Tenho plena capacidade de viver o presente. Envelhecer não é uma ficção. Escolho a sensação de fim de festa, dever cumprido, me safo da ressaca. É preciso se tornar ridícula para coisas bestas do mundo. Embora deveria ter me tatuado mais (risadas).
⁃ Ainda pode.
⁃ Talvez ainda tatue na coxa direita. Na parte de dentro, perto de mim.
⁃ A senhora fica com saudade do que era?
⁃ (em voz baixa) Tenho minhas saudades, mas estou sempre inventando. O presente me toma numa verdade interna (silêncio).
⁃ Como é viver e escrever aqui?
⁃ Tenho um quarto só pra mim. Tento traduzir em palavras o que penso, por isso, tenho que ter liberdade para criar e, ao mesmo tempo, necessito de trocas. Às vezes, chego a duvidar do que posso acreditar ou até mesmo do que posso dizer ou escrever, como nesta entrevista. Creio que a senhora pode perceber a minha necessidade de querer desafiar as possibilidades do que se pensa e se escreve.