marcapasso apertado


Publicado em
Texto por
Severo Garcia
Imagem por
Severo Garcia

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Houve uma época do nosso casamento em que a noite, a presença dele era como um sonífero. Ficávamos perto um do outro e meu corpo adormecia, como se estivesse grogue. Demorei um certo tempo para perceber que nossas vidas deveriam acontecer separadas.

 

Ele era brincalhão, conseguia arrancar algumas risadas com facilidade. Eu adorava quando riamos juntos. Era leve. Mas depois de um tempo deixamos de nos encontrar dentro dos nossos sonhos. Havia uma distância invisível entre nós.

 

Não brigávamos. Muito menos batíamos boca um com o outro. Ficamos mansos, sonolentos. Em alguns dias, logo que sentávamos no sofá da sala, eu dormia em poucos minutos. Geralmente, acordava em pequenos sustos. Notava que ele não estava mais no ambiente. Então, levantava e ia até a cama para dormir do lado dele.

 

Não sei porque não seguia dormindo no sofá, já que dormir ao lado dele era uma convenção. Um velho acordo que fizemos quando ainda queríamos estar juntos, lado a lado. Esse tempo todo, não foi torturante, ao contrário, houveram momentos especiais. Mesmo assim, vivemos uma narcose do casamento.

 

Esse momento da vida era um modo para acalmar medos e vontades. Hábitos e rotinas na busca por segurança. Repetição e reprodução do conhecido. Estreitas certezas sem o risco do desconhecido. A sensação de segurança que o casamento pode causar, nos convenceu a ter casa própria. Parcelas de 30 anos de vida. É um acinte viver endividado com um sonho imutável.

 

O casamento é a base que cristaliza e acomoda a sociedade. Ele limita o caos. Não estou defendendo a ideia de que casar é algo que deve ser refutado, seria simplificar uma ideia que sustenta a sociedade ao longo das civilizações. Enfim, não quero afirmar, nem confirmar qualquer tese sobre o que é apenas especulação. O fato é que o meu casamento era um sonífero familiar.

 

E se separar do que está acomodado é uma tarefa complicada. É necessário se desapegar de muitas coisas. Pequenas ou grandes. O chuveiro quentinho, a cama macia, a história conhecida. A separação também exige fôlego. Nada se resolve num instante.

 

Se casar é um processo rápido e partilhado, a separação é uma guerra solitária entre o racional e o irracional. Um duelo entre forças e razões. Ao mesmo tempo, é preciso paciência. Um luxo para quem briga com a inquietude. Quem está atrás da liberdade se dispõe a abrir mão do que é seguro. Assume o risco de também perder o que pode ser necessário, mas a liberdade não assume dívidas, nem mesmo normas.

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