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Parece impossível falar de mim estando aqui dentro. Não sei o por quê, mas o vento e sol me deixam aérea. Às vezes, acendo o fogão e não sei o que quero aquecer. É como uma fagulha: num milésimo de segundo, deixo de sentir que estou em mim. É um blecaute momentâneo. Tem acontecido com mais frequência e intensidade. Também não sei dizer quando começaram esses episódios, chamo de “blecaute”. Arriscaria dizer que os tenho desde a infância.
Nunca senti que prestaram atenção em mim quando eu era pequena. Às vezes, nem parecia existir na minha própria família. Eu andava pela casa evitando atrapalhar. Passava muito tempo sozinha. Lembro de improvisar comida ou um lanche à noite, como se cuidar de mim fosse um segredo. Recordando agora, percebo que era uma criança triste, e depois, uma adolescente triste. As coisas me atravessavam. Vivia um vazio, sem saber onde colocar minha força. Acho que por isso comia tanto: comia até me acalmar, até amansar o corpo, que ficou gordo e lento. Só hoje entendo isso.
Na época, era triste, sim, mas não a ponto de querer morrer ou me ferir. Era apenas tola — ria dos programas que via na televisão. Coisas que hoje eu não conseguiria assistir, nem rir se tentasse. Ainda assim, parte daqueles programas ajudou a moldar meu senso crítico, minhas referências.
Não lembro de blecautes marcantes nessa fase, embora desconfie que eles sempre estiveram ali, à espreita.
Nunca fiz terapia. É assim mesmo que funciona? Eu falo e você escuta? Essa é a regra? É estranho falar do passado assim, sem retorno. Você não pode falar? É isso que ensinam na universidade, técnicas de silêncio? (risos). Desculpe se pareço debochada, não é a intenção. Sei que o assunto é sério.
Então é isso, um depoimento livre? Se for, é uma forma curiosa de civilizar meu lado podre, triste, carregado. Dá até pra dizer que é uma confissão. Mas detesto essa palavra. Veja só: ideias que foram implantadas em mim. Eu nem acredito mais em Deus. Ainda assim, creio que existam leis fundamentais e imutáveis. Se matar é pecado, a punição é a prisão? E prender, não seria uma forma de tortura passiva?
Não sei. O problema é que, se levássemos a sério o que fazemos, e não apenas o que falamos, será que estaríamos vivendo como vivemos hoje?
Vivo há mais de trinta anos com HIV. Guardei isso pra mim. Claro, contei à minha filha e a algumas poucas pessoas próximas. No início, vivi uma mistura de sentimentos: vergonha, repulsa, raiva. Raiva de mim mesma, de não ter me protegido, dele por me contaminar, raiva da maldição que me tomou. Não sabia como viver depois disso. Talvez por isso a raiva tenha virado força
Peguei essa doença e a transformei em vontade, na coragem de lutar. Entrei para a política. Acabei presidente do sindicato. Aprendi a colocar minha raiva num lugar, a esvaziá-la de mim. O meu destino foi acreditar, e fazer acreditar, que era preciso mudar quem oprimia trabalhadoras e trabalhadores
Juntei minha força a uma ideologia. Com ela, achei que poderia tudo. Perdi o medo de perder. Não me importava se fosse presa ou morta. Minha filha já tinha dezoito anos; achei que se viraria. Criei ela para o mundo, para buscar suas próprias saídas. Nosso lema era simples: “Dá o teu jeito.” Um mantra que inventei para enfrentar o que viesse.
A vida ganhou outro sentido. Uma doença, um trauma, uma tragédia, tudo isso também pode dar sentido à vida.